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UM PRODUTO DO ESTADO, UM ATESTADO DA NOSSA IMPOTÊNCIA!

Alguns anos após entrar no “mundo” da solidariedade, da luta pelo outro, da militância, eu acho que posso dizer que todo começo é um

Projeto Mãos Invisíveis

Alguns anos após entrar no “mundo” da solidariedade, da luta pelo outro, da militância, eu acho que posso dizer que todo começo é um pouco emocionado. A gente vive um momento de descoberta e de paixão, em que criamos nossas próprias utopias e várias ilusões. A gente acredita mesmo, por um tempo, que estamos aqui pra transformar o mundo muito rapidamente. Que conseguiremos vencer as demandas, ajudar várias pessoas, mudar a mente das gestões, ocupar espaços de luta e discussões de forma pacífica e muito amorosa.

Até que, aos poucos, vamos entendendo a realidade. Realidade distópica que vivemos, em que pesa grandemente a lerdeza da política e a urgência da rua. Como que em um baque fortíssimo, você se depara com as suas ilusões ali, de carne e osso, na sua frente, ilusões vivas, com nome, sobrenome e uma vida inteira sendo violadas em seus direitos. 

Eu já me deparei com várias dessas ilusões. E cada uma delas me muda tão grandemente, que nem consigo me lembrar como era a vida antes disso. A última vez foi domingo. Domingo, dia das mães, eu posso dizer que segurei o rosto, com minhas duas mãos, da minha maior e mais utópica ilusão. Um rosto machucado, todo cheio de feridas, que sorria pra mim dizendo “está tudo bem”. Não, não estava. Pra mim, não estava. Ela talvez conheça menos de ilusão do que eu... se bem que lembro de conversarmos, na minha sala, sentadas e com seu filho no meu colo, sobre como ela se formaria na faculdade, com todo glamour que desejava. Duas iludidas.

Sim, eu e minha ilusão tivemos uma relação muito próxima. Ela, uma menina que conheci quando estava grávida, em situação de rua, tentando sobreviver em meio às intempéries que a situação traz. Eu, emocionada, acreditando que poderia mudar a vida de alguém.

Durante todo o processo, confesso que não percebi o quão inocente eu estava sendo. Foram meses de muito carinho, contato, cuidado, proteção. Acreditei de forma intrínseca que seria algo transformador, pra mim, pra ela, pra todas as pessoas que estavam ali, iludidas. 
Passei por tudo que alguém possa imaginar. Desde recolher uma mãe adolescente em casa, até enfrentar conselhos tutelares e juiz em uma audiência de cartas marcadas. Conversas, parcerias, gente que estava ali, acreditando tanto quanto eu que poderíamos realmente mexer com peixes grandes.
Quando recebi a notícia de que o bebê havia sido entregue para um abrigo e minha ilusão estava de novo abraçada ao acaso, nas ruas, meu mundo desabou. Desabou mesmo, como se o chão desmoronasse. "Como assim?Depois de tudo o que fizemos? Ela volta pra rua? E o amparo, e o Estado, e a prefeitura, e a sociedade? Como deixam isso acontecer desse jeito?" E dali pra frente, não poderíamos fazer mais nada.

Vi minha iusão esmorecer como areia entre meus dedos, tomando outras formas, outras decepções. Vi uma mulher se entregando às circunstancias da vida e não tive força nenhuma pra falar que não era pra ser assim. Dei esperança, falei que ela conseguiria, menti. Menti e prometi coisas que jamais conseguiria cumprir, fiz acreditar que ela teria chances. Não teve. 

Achamos que conseguiríamos provar que todas as mulheres tem o direito de ser mães, que alguém entenderia isso, minimamente. E que antes e muito antes de sermos mães, somos MULHERES, e com direitos. Acreditamos que enfrentar o Estado seria possível. Que ignorar a ausência de políticas públicas que contemplem essas iludidas e violadas, que nem direito a ser mulheres tem, seria viável.
Quando pego no rosto dela eu me deparo muito mais comigo mesma e uma revolta com a qual convivo todos os dias, do que com qualquer outra coisa. Não é altruísmo nem caridade nem vontade de evoluir. É uma consciência tao imensa sobre nossa falência enquanto sociedade, tao imensa e tao perturbadora, que só resta respirar, olhar nos olhos dessas ilusões e dizer que não vamos cansar. 

Sigo acreditando que estou aqui pra gritar muito pra que essas mulheres caladas enquanto são violadas desde o nascimento até a maternidade e velhice, sejam minimamente vistas, ouvidas, sentidas. Que vou segurar com minhas mãos cada uma dessas ilusões e pensar que, em algum momento, conseguirei faze-lo sem que o silêncio tome conta do meu peito, enquanto minha mente grita sem parar!

Texto redigido por Vanessa Lima, Coordenadora e idealizadora do Projeto Mãos Invisíveis

09/05/2022

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