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Redes sociais, Direito de Imagem e Violações de Direitos

Fotografias de pessoas em situação de rua precisam de autorização para serem publicadas

Projeto Mãos Invisíveis

Recentemente a fotografia de uma criança virou alvo de uma ação judicial e de muita polêmica nas redes sociais e no meio jurídico, o motivo: ela virou tatuagem de uma pessoa que sequer conhecia o garoto de apenas quatro anos. O caso foi registrado em São Paulo. A situação foi denunciada pela mãe da criança, Daniele de Oliveira Cantanhede, mais conhecida como Preta Lagbara. Segundo ela, não foi solicitada autorização dela e do pai do menino e nem do fotógrafo responsável pelo registro. Preta afirma que mesmo se o rapaz tivesse feito o pedido, jamais aceitaria que uma pessoa desconhecida tivesse o rosto do filho dela eternizado na pele. O resultado foi o debate judicial e o acordo pela remoção da tatuagem.

Outro caso recente no Brasil foi da Associação Yanomami Urihi que pediu que a imagem de idosa que morreu de desnutrição não fosse mais divulgada. A solicitação foi feita por meio de uma nota oficial que diz que todos da comunidade “Estão cientes da impossibilidade de retirar a imagem de todos os meios de comunicação, tendo em vista que já foi compartilhada por diversas pessoas, mas resolvemos publicar a nota como forma de alerta para novas matérias que surgirem". Ainda de acordo com a Associação, eles “entendem a importância de levar ao mundo a situação drástica, mas por questões culturais a sua imagem não poderá mais ser divulgada".

Os casos levantaram o debate na sociedade e também entre juristas. Mas os especialistas são unânimes em afirmar que todas as pessoas têm direito à intimidade, honra e personalidade respeitados. A Constituição Federal e o Código Civil garantem que nenhuma imagem pode ser publicada sem autorização, como parte dos chamados direitos da personalidade. Benefício dado a todos os brasileiros, indistintamente, como um benefício de todo cidadão e cidadã que vive no Brasil.

A questão é que pessoas em situação de vulnerabilidade, pouco sabem de seus direitos e como reclamá-los. No caso da criança e dos Yanomami, apesar das violações, o impacto da denúncia foi grande já que muitas pessoas acabam se sensibilizando com a situação. Mas e com aqueles que não são percebidos pela sociedade? Um grupo de pessoas bem específico: a população em situação de rua. Eles não são poucos, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o país tem, pelo menos, 281 mil pessoas em situação de rua. O número foi alcançado em 2022, com aumento de 38% em relação a 2019, quando eram cerca de 220 mil. Mas você já imaginou uma pessoa em situação de rua denunciando o uso abusivo de sua imagem?

Como fica a divulgação de doação de cestas básicas, flagrantes do cotidiano de atividades da intimidade da pessoa que não tem moradia?

Local Público e o Direito à Intimidade

A situação de rua é assim um termo geral, convencionado para se referir ao contexto experienciado por pessoas que se encontram em condições vulneráveis, seja pelo tempo, por doenças, seja pela violência urbana etc. Ainda que a pessoa esteja ocupando o espaço público, ela tem a sua intimidade, privacidade e dignidade garantidas pela Constituição, pelo simples fato de ser humana. Não há assim nenhuma alteração na garantia de seu direito de imagem. Por exemplo, se uma revista deseja publicar uma foto de uma pessoa em situação de rua, para fins comerciais, ela deve solicitar a autorização por escrito do seu titular”, é o que explica a advogada e Oficial de Chancelaria no Ministério das Relações Exteriores, mestranda em direito no PPGD/UFPR, na linha de direitos humanos e democracia, Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo.

Para a especialista é importante que toda a sociedade compreenda que “a pessoa em situação de rua é um cidadão como qualquer outro. Dessa forma, possui sim o direito de imagem assegurado pelo artigo 5°, X, da Constituição Federal Brasileira de 1988, que diz respeito às garantias fundamentais dos seres humanos, bem como pelo artigo 20 do Código Civil brasileiro, que se refere a ele como direito de personalidade. Este direito é personalíssimo, ou seja, somente pode ser exercido pela pessoa titular. Essa qualidade o faz inalienável, intransmissível e irrenunciável, porque diz respeito à integridade da pessoa, à sua intimidade, à sua privacidade e à sua dignidade”.

Opinião reforçada pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB-PR, Anderson Rodrigues Ferreira. “O fato de estar na rua, que é um local público, não muda a proteção legal em relação ao direito à imagem. O que pode ocorrer é que o indivíduo em situação de rua esteja em uma condição de vulnerabilidade, o que torna ainda mais importante a proteção de seus direitos. Problemas psiquiátricos e de dependência química e alcoólica não alteram o direito à imagem. No entanto, é importante destacar que esses indivíduos podem estar em uma situação ainda mais vulnerável, o que torna necessário um cuidado especial em relação à sua dignidade e integridade física e mental. A Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) garantem o direito à proteção contra qualquer forma de violência ou abuso”, conclui.

A questão também é ética

A sociedade deve refletir inclusive sobre as imagens feitas em ações sociais. O registro da entrega de cestas básicas, refeições ou de roupas e produtos de higiene também são exposição da intimidade que nem sempre é benéfica, como explica Anderson Rodrigues Ferreira. “É fundamental avaliar a questão não só pelo aspecto legal, mas também pela moral, ética e principalmente pelo lado social. É preciso ter em mente que a utilização da imagem de pessoas em situação de vulnerabilidade pode reforçar estereótipos e preconceitos, além de expor esses indivíduos a riscos e violações de seus direitos. Nesse sentido, podemos citar o filósofo Immanuel Kant, que defendia o imperativo categórico de respeitar a dignidade humana em todas as circunstâncias. Além disso, o filósofo francês Jean-Paul Sartre afirmava que a utilização da imagem das pessoas sem o seu consentimento é uma forma de objetificação e desrespeito à sua liberdade”.

O psicólogo Rafael de Paula afirma que a nossa sociedade, principalmente os meios de comunicação, utiliza a fotografia como uma ferramenta de sensibilização, mas que o excesso pode ser prejudicial. “As imagens são sempre importantes, mesmo numa sociedade como a nossa as imagens acabam, às vezes tendo um efeito, de certo forma, contraproducente, no sentido de que a exposição excessiva acaba nos tornando indiferentes. Como a gente vê em todos os lugares, o excesso dessa vulnerabilidade, nós acabamos não refletindo muito. No mesmo sentido do que diz a autora Susan Sontag na obra ‘Diante da Dor do Outro’, há um excesso na exposição da imagem que acaba tendo um efeito contrário. Nesse sentido, o impacto é maior quando a gente consegue se colocar na situação retratada, quando a empatia passa para além da imagem, mas passa pela história de vida da pessoa”.

Segundo De Paula, a questão também deve ser analisada mesmo quando existe uma autorização de imagem da pessoa em situação de rua. Já que “a população em situação de rua está acostumada, infelizmente, a ter muitos direitos violados, e não necessariamente é se vê como um portador de direitos e de conseguir exigir que esses direitos sejam respeitados. E a pessoa vai perdendo alguns pedaços de si na rua, dá pra se dizer que ela perde referências, e dependendo do tempo e da situação em que ela está, ela perde tanto essas referências que acaba se tornando um tanto quanto solipsisma, cuja situação perdeu até a referência com o outro. Então essa autorização acaba sendo um tanto quanto distorcida”.

Bons exemplos

Foi refletindo sobre toda essa problemática que uma organização do terceiro setor que trabalha com a população em situação de rua decidiu fazer seu trabalho de um jeito diferente. A Organização não Governamental Lisboa Invisível tem um trabalho de grande repercussão nas redes sociais e mantém um perfil no Instagram (@lisboainvisivel) que é um belo exemplo de como é possível chamar a atenção para o problema da falta de moradia e da violação de direitos sem cometer mais uma infração contra essa parcela da população.

Segundo Ana Luísa Melo, doutoranda em políticas públicas, ativista de direitos humanos, e Priscila Brandão, doutoranda em sociologia, técnica de intervenção social, fundadoras da Ong, contam que essa questão foi analisada desde o início do trabalho delas. “Quando iniciamos o projeto debatemos internamente como seria a nossa abordagem, justamente por não haver nenhuma legislação que proibisse a exposição dos rostos das pessoas em situação de rua. Levamos em consideração o contexto de Portugal (a mentalidade e a cultura) e a nossa experiência de muitos anos com esse público. Partimos do pressuposto que iríamos sempre obter o consentimento deles (mesmo se não fosse uma obrigatoriedade legal), mas que iríamos zelar pela imagem de cada pessoa por detrás da história, porque acreditamos que a exposição na nossa página é propositada muito mais para o conteúdo de conscientização do que o de sensibilização. É claro que são conceitos que podem andar próximos, mas tomar o cuidado com esta exposição evitaria cairmos no sensacionalismo, o que de fato não é o propósito do projeto. A norma de proteção de imagem tem um motivo de ser e estamos sensíveis a isso na nossa página”.

Ana Luísa explica que a legislação portuguesa, assim como a brasileira, não trata especificamente a questão do direito de imagem da população em situação de rua. No entanto, a cultura da sociedade reflete a situação de forma distinta e isso pode ser constatado inclusive nos grandes meios de comunicação. “Seja o terceiro setor e seja (inclusive) a mídia tende a não expor os rostos das pessoas em situação de rua. Isso se deve porque a legislação do direito à imagem é bem rigorosa por aqui. Muito resumidamente, o direito da imagem se desdobra em: o direito da pessoa não ter o seu retrato exposto em público sem o seu consentimento. O consentimento é indispensável, portanto. Quando a imagem é captada contra a vontade do fotografado, ainda que não seja utilizada, ou ainda com consentimento, mas publicitada contra a vontade do fotografado; ou em ambas as situações, além de ilegal é considerado pela sociedade portuguesa como antiético. É comum entre as ONGs considerarem a exposição de rostos de pessoas em vulnerabilidade uma questão antiprofissional. O direito de imagem apesar de ser direcionado para a população em geral e não especificamente para a população em situação de rua engloba a todxs e por isso se aplica na prática a eles também. Tanto que, o direito de imagem é tratado como a faculdade de não ser fotografado sem o seu consentimento com ou sem caráter comercial. Está em causa não o cunho financeiro, mas a figura humana em termos tais, que se for identificável ainda que a foto envolva apenas partes do corpo é suficiente para ter proteção legal”.

Aqui no Brasil a legislação e a formação de políticas públicas para a população em situação de rua é muito recente. A Política Nacional para a População em Situação de Rua foi criada em dezembro de 2009. O projeto prevê a formação de Comitês Intersetoriais nas três esferas de poderes, mas elas têm sido pouco efetivas e já foram alvo de uma denúncia à Organização das Nações Unidas, a ONU, em 2017, por um conjunto de entidades e de movimentos sociais sobre o cenário de violência enfrentado pelas pessoas em situação de rua no Brasil. O documento aponta para o alto número de casos de violação de direitos humanos e indica a necessidade de criação de políticas públicas voltadas às pessoas que enfrentam esse tipo de vulnerabilidade social e econômica.

E essa ausência do estado é apontada também pelo antropólogo, Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, coordenador do Projeto Moradia Primeiro e Diretor da Organização não Governamental Mãos Invisíveis, Tomás Melo, como a causa das violações sofridas pela população em situação de rua. E essa inércia também impede a alteração desse quadro. “Uma pessoa domiciliada que se sente violada em seus direitos de imagem pode ter problemas para garantir este uso inapropriado, no caso de uma pessoa em situação de rua, tal problema se agrava na medida em que as condições práticas de garantir os direitos (todos eles) são radicalmente comprometidas pela própria situação de exposição pública de seus corpos e das condições de acesso a toda ordem de bens”.

Melo afirma que isso reflete diretamente na questão do abuso ao direito de imagem dessa parcela da população, além da pressão do modelo econômico aplicado que acaba sendo ainda mais excludente. “Na sociedade capitalista, racista e desigual que vivemos, quanto maior a vulnerabilidade e precariedade econômica e política das pessoas, mais elas estão à mercê de toda sorte de intervenção e abuso. A captura não autorizada da imagem é um dos tantos abusos e violências sofridas pela população em situação de rua. Fenômeno que não é exclusivo do Brasil e que não se resume à imagem, tendo em vista que se trata propriamente de uma invasão do corpo e da individualidade deste 'outro' tratado como objeto, parte do cenário urbano. Da mesma forma que se captura a imagem, tenta-se impedir a permanência nos espaços com estratégias de arquitetura hostil, com o roubo de pertences e a expulsão sumária dos locais. Em sua forma final, os ataques violentos se manifestam como uma espécie de 'solução final' destes corpos indesejados”.

Mudança

Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB-PR, Anderson Rodrigues Ferreira, apesar de a legislação brasileira ser sofisticada e ter diversos recursos que abordam a questão, é preciso a formação de novos dispositivos. “A legislação brasileira precisa evoluir neste aspecto, buscando garantir de forma mais clara e específica o direito à imagem das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Além disso, é importante que a proteção legal seja acompanhada de políticas públicas. A população em situação de rua é um problema social grave e complexo que exige políticas públicas eficazes e consistentes para ser solucionado. Infelizmente, o que se observa é a ausência de uma política pública inclusiva por parte do Estado, que muitas vezes se limita a criar planos de governo que acabam sendo abandonados a cada troca de mandato. A falta de continuidade na implementação de políticas públicas é um dos grandes desafios para enfrentar a problemática da população em situação de rua”, ressalta.

Já para o antropólogo Tomás Melo, não basta a alteração da legislação, mas sim o compromisso com a solução do problema, que vai além do Direito de Imagem. “A mudança da realidade das pessoas em situação de rua passa, em minha opinião, exclusivamente pela criação de condições de superação da situação de rua, causa primeira de todos os problemas que se agravam quando uma pessoa se encontra nesta circunstância. A defesa da imagem é um dentre diversos problemas, tais como acesso à saúde, educação, segurança alimentar, justiça, trabalho, renda, segurança, dentre outros. Todos eles severamente comprometidos em virtude da situação de rua. Por isso, a resolução destas questões passa, antes de tudo, pela capacidade de superar esta circunstância que diferencia pessoas domiciliadas daquelas em situação de rua”.

Projeto Mãos Invisíveis