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Papo Reto do Mãos

Em um vídeo que circulou na internet um ano atrás, um homem, empresário, político, encostava o seu carro e oferecia dinheiro a um...

Mãos Invisíveis

Projeto Mãos Invisíveis

Todos igualmente sujeitos

Em um vídeo que circulou na internet um ano atrás, um homem, empresário, político, encostava o seu carro e oferecia dinheiro a um indivíduo que dizia estar passando fome. Enquanto conversava com o indivíduo, o empresário filmava o diálogo. Apesar de desconfiado, o homem em situação de rua permanece ali, pela promessa de receber mais um pouco de dinheiro. Enquanto finge se compadecer da situação, o empresário puxa o braço do rapaz, lhe dá um tapa e grita: “vai trabalhar, vagabundo”. O vídeo viralizou, revoltou muita gente e fez o empresário ser expulso do seu partido político. Em sua defesa, ele disse que o rapaz, no dia anterior, tentou assaltá-lo, mantendo-o sob a mira de um revólver. Não havia, entretanto, um boletim de ocorrência registrado do fato. Mesmo no vídeo, não houve referência ao suposto assalto. O empresário chama o rapaz de “vagabundo” e o manda “trabalhar”, não fazendo qualquer referência a uma abordagem anterior.

Na mesma época, outro vídeo mostrava uma mulher acusando um homem em situação de rua de pegar o seu celular. Ele, sem reagir, lhe entrega a mochila que carrega para que ela a reviste. Ela, não encontrando o celular, fere o homem com uma faca. Ele se afasta. Ela o segue e o fere mais algumas vezes. O homem é atendido em um hospital, mas não resiste e morre. Por acaso, câmeras de segurança gravaram a cena. Por acaso, não estamos especulando se “não foi por drogas”, se “não foi legítima defesa” ou o que costumamos inferir quando a vítima é pessoa em situação de rua.

Era uma vida humana, e foi tirada assim, de forma banal.

Precisamos falar sobre o valor dos corpos das pessoas em vulnerabilidade social.
Sobre o esvaziamento, no imaginário coletivo, da sua condição humana.
Sobre seu rotulamento como criatura descartável.
As notícias na imprensa são sempre superficiais e sensacionalistas. Qual era o seu nome? O que o levou às ruas? Os vídeos que citei rodaram o país sem suscitar nenhuma discussão profunda. Talvez vocês nem saibam do que estou falando. Chocaram, e passaram.

O homem, esses homens, qualquer homem ou mulher merece respeito do Estado e da comunidade, mesmo quando não acredita mais merecer. Qualquer ato degradante e desumano com o outro esvazia a dignidade de toda a humanidade. Respeito é o mínimo. É como a antiga lição da sua avó: tenha pelo outro o mesmo respeito que você pensa que lhe devem.

Nenhum de nós ergueu a faca ou investiu contra esses homens, mas todos nós precisamos falar sobre como aceitamos, diariamente, o esvaziamento de sua humanidade, sua invisibilização social. Sobre como lemos, todos os dias, sobre “moradores de rua” esfaqueados, queimados, recolhidos, sem nos perguntarmos “o que realmente aconteceu?”, “quem era essa pessoa?”, “como ela chegou até ali?”, sem pensarmos que a vida é fluida e insegura, e que aquele corpo vulnerável podia tranquilamente ser o meu, ou o seu.

Que a nossa substância é a mesma. Que todos nós estamos igualmente sujeitos.

Quando olhamos para a pessoa em situação de rua, temos o hábito de retirar dela a condição de ser social. Dizemos: ele é um excluído. Não pensamos nesse grupo de pessoas como indivíduos que existem socialmente, que sim, consomem, interagem. São pessoas que, mesmo em bicos no mercado informal, descarregam caixas, catam e reciclam o papelão que descartamos, ou até, em situações de trabalho degradante e desumano (“ele deve levantar as mãos pro céu que alguém lhe deu um emprego!”), erguem as estruturas dos festivais cool de música que frequentamos.

Nós, indivíduos moradores, precisamos parar de desumanizar as pessoas em situação de rua para, assim, melhor lidarmos com o absurdo de estarmos dormindo calmamente sob nossos tetos, sem grandes angústias, enquanto tantas pessoas feitas de carne, osso e dores como todos nós se expõem ao desamparo e à desesperança. Para nos convencermos que o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal garante somente uma dignidade humana, a nossa, a dignidade dos humanos que mereceram, cuja família não se desestruturou, cuja vida não sofreu vieses, cujo corpo não falhou.

Essa é a urgência: precisamos parar de repartir os seres humanos em categorias quando falamos no mínimo. O mínimo é o mínimo. A sociedade somos todos, morando ou não. Quem está na rua dormindo tem rosto, tem história, mas não devemos esperar ouvir cada narrativa para lembrar disso, para julgarmos, do nosso plenário invisível, feito uma casta superior de Cérberos, quem merece morrer ou viver.

Projeto Mãos Invisíveis