O Edital a seguir contém os nomes dos voluntários selecionados para o processo seletivo de agosto de 2023.
Os selecionados receberão também o resultado por e-mail.
O número de inscritos foi superior a nossa demanda e abrimos somente 35 vagas de 118 inscrições. Priorizamos muito a nossa formação interna para os voluntários e no momento as vagas estavam limitadas pela capacidade de atendimento. Gostaríamos muito de poder receber todos e todas, mas a nossa estrutura atual não nos permite.
Caso não tenha sido selecionado não fique triste, logo teremos um novo chamamento (FEV/2024).
Aos selecionados, sejam muito bem-vindos e até já 🙂
Recentemente a fotografia de uma criança virou alvo de uma ação judicial e de muita polêmica nas redes sociais e no meio jurídico, o motivo: ela virou tatuagem de uma pessoa que sequer conhecia o garoto de apenas quatro anos. O caso foi registrado em São Paulo. A situação foi denunciada pela mãe da criança, Daniele de Oliveira Cantanhede, mais conhecida como Preta Lagbara. Segundo ela, não foi solicitada autorização dela e do pai do menino e nem do fotógrafo responsável pelo registro. Preta afirma que mesmo se o rapaz tivesse feito o pedido, jamais aceitaria que uma pessoa desconhecida tivesse o rosto do filho dela eternizado na pele. O resultado foi o debate judicial e o acordo pela remoção da tatuagem.
Outro caso recente no Brasil foi da Associação Yanomami Urihi que pediu que a imagem de idosa que morreu de desnutrição não fosse mais divulgada. A solicitação foi feita por meio de uma nota oficial que diz que todos da comunidade “Estão cientes da impossibilidade de retirar a imagem de todos os meios de comunicação, tendo em vista que já foi compartilhada por diversas pessoas, mas resolvemos publicar a nota como forma de alerta para novas matérias que surgirem”. Ainda de acordo com a Associação, eles “entendem a importância de levar ao mundo a situação drástica, mas por questões culturais a sua imagem não poderá mais ser divulgada”.
Os casos levantaram o debate na sociedade e também entre juristas. Mas os especialistas são unânimes em afirmar que todas as pessoas têm direito à intimidade, honra e personalidade respeitados. A Constituição Federal e o Código Civil garantem que nenhuma imagem pode ser publicada sem autorização, como parte dos chamados direitos da personalidade. Benefício dado a todos os brasileiros, indistintamente, como um benefício de todo cidadão e cidadã que vive no Brasil.
A questão é que pessoas em situação de vulnerabilidade, pouco sabem de seus direitos e como reclamá-los. No caso da criança e dos Yanomami, apesar das violações, o impacto da denúncia foi grande já que muitas pessoas acabam se sensibilizando com a situação. Mas e com aqueles que não são percebidos pela sociedade? Um grupo de pessoas bem específico: a população em situação de rua. Eles não são poucos, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o país tem, pelo menos, 281 mil pessoas em situação de rua. O número foi alcançado em 2022, com aumento de 38% em relação a 2019, quando eram cerca de 220 mil. Mas você já imaginou uma pessoa em situação de rua denunciando o uso abusivo de sua imagem?
Como fica a divulgação de doação de cestas básicas, flagrantes do cotidiano de atividades da intimidade da pessoa que não tem moradia?
Local Público e o Direito à Intimidade
“A situação de rua é assim um termo geral, convencionado para se referir ao contexto experienciado por pessoas que se encontram em condições vulneráveis, seja pelo tempo, por doenças, seja pela violência urbana etc. Ainda que a pessoa esteja ocupando o espaço público, ela tem a sua intimidade, privacidade e dignidade garantidas pela Constituição, pelo simples fato de ser humana. Não há assim nenhuma alteração na garantia de seu direito de imagem. Por exemplo, se uma revista deseja publicar uma foto de uma pessoa em situação de rua, para fins comerciais, ela deve solicitar a autorização por escrito do seu titular”, é o que explica a advogada e Oficial de Chancelaria no Ministério das Relações Exteriores, mestranda em direito no PPGD/UFPR, na linha de direitos humanos e democracia, Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo.
Para a especialista é importante que toda a sociedade compreenda que “a pessoa em situação de rua é um cidadão como qualquer outro. Dessa forma, possui sim o direito de imagem assegurado pelo artigo 5°, X, da Constituição Federal Brasileira de 1988, que diz respeito às garantias fundamentais dos seres humanos, bem como pelo artigo 20 do Código Civil brasileiro, que se refere a ele como direito de personalidade. Este direito é personalíssimo, ou seja, somente pode ser exercido pela pessoa titular. Essa qualidade o faz inalienável, intransmissível e irrenunciável, porque diz respeito à integridade da pessoa, à sua intimidade, à sua privacidade e à sua dignidade”.
Opinião reforçada pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB-PR, Anderson Rodrigues Ferreira. “O fato de estar na rua, que é um local público, não muda a proteção legal em relação ao direito à imagem. O que pode ocorrer é que o indivíduo em situação de rua esteja em uma condição de vulnerabilidade, o que torna ainda mais importante a proteção de seus direitos.Problemas psiquiátricos e de dependência química e alcoólica não alteram o direito à imagem. No entanto, é importante destacar que esses indivíduos podem estar em uma situação ainda mais vulnerável, o que torna necessário um cuidado especial em relação à sua dignidade e integridade física e mental. A Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (1984) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) garantem o direito à proteção contra qualquer forma de violência ou abuso”, conclui.
A questão também é ética
A sociedade deve refletir inclusive sobre as imagens feitas em ações sociais. O registro da entrega de cestas básicas, refeições ou de roupas e produtos de higiene também são exposição da intimidade que nem sempre é benéfica, como explica Anderson Rodrigues Ferreira. “É fundamental avaliar a questão não só pelo aspecto legal, mas também pela moral, ética e principalmente pelo lado social. É preciso ter em mente que a utilização da imagem de pessoas em situação de vulnerabilidade pode reforçar estereótipos e preconceitos, além de expor esses indivíduos a riscos e violações de seus direitos. Nesse sentido, podemos citar o filósofo Immanuel Kant, que defendia o imperativo categórico de respeitar a dignidade humana em todas as circunstâncias. Além disso, o filósofo francês Jean-Paul Sartre afirmava que a utilização da imagem das pessoas sem o seu consentimento é uma forma de objetificação e desrespeito à sua liberdade”.
O psicólogo Rafael de Paula afirma que a nossa sociedade, principalmente os meios de comunicação, utiliza a fotografia como uma ferramenta de sensibilização, mas que o excesso pode ser prejudicial. “As imagens são sempre importantes, mesmo numa sociedade como a nossa as imagens acabam, às vezes tendo um efeito, de certo forma, contraproducente, no sentido de que a exposição excessiva acaba nos tornando indiferentes. Como a gente vê em todos os lugares, o excesso dessa vulnerabilidade, nós acabamos não refletindo muito. No mesmo sentido do que diz a autora Susan Sontag na obra ‘Diante da Dor do Outro’, há um excesso na exposição da imagem que acaba tendo um efeito contrário. Nesse sentido, o impacto é maior quando a gente consegue se colocar na situação retratada, quando a empatia passa para além da imagem, mas passa pela história de vida da pessoa”.
Segundo De Paula, a questão também deve ser analisada mesmo quando existe uma autorização de imagem da pessoa em situação de rua. Já que “a população em situação de rua está acostumada, infelizmente, a ter muitos direitos violados, e não necessariamente é se vê como um portador de direitos e de conseguir exigir que esses direitos sejam respeitados. E a pessoa vai perdendo alguns pedaços de si na rua, dá pra se dizer que ela perde referências, e dependendo do tempo e da situação em que ela está, ela perde tanto essas referências que acaba se tornando um tanto quanto solipsisma, cuja situação perdeu até a referência com o outro. Então essa autorização acaba sendo um tanto quanto distorcida”.
Bons exemplos
Foi refletindo sobre toda essa problemática que uma organização do terceiro setor que trabalha com a população em situação de rua decidiu fazer seu trabalho de um jeito diferente. A Organização não Governamental Lisboa Invisível tem um trabalho de grande repercussão nas redes sociais e mantém um perfil no Instagram (@lisboainvisivel) que é um belo exemplo de como é possível chamar a atenção para o problema da falta de moradia e da violação de direitos sem cometer mais uma infração contra essa parcela da população.
Segundo Ana Luísa Melo, doutoranda em políticas públicas, ativista de direitos humanos, e Priscila Brandão, doutoranda em sociologia, técnica de intervenção social, fundadoras da Ong, contam que essa questão foi analisada desde o início do trabalho delas. “Quando iniciamos o projeto debatemos internamente como seria a nossa abordagem, justamente por não haver nenhuma legislação que proibisse a exposição dos rostos das pessoas em situação de rua. Levamos em consideração o contexto de Portugal (a mentalidade e a cultura) e a nossa experiência de muitos anos com esse público. Partimos do pressuposto que iríamos sempre obter o consentimento deles (mesmo se não fosse uma obrigatoriedade legal), mas que iríamos zelar pela imagem de cada pessoa por detrás da história, porque acreditamos que a exposição na nossa página é propositada muito mais para o conteúdo de conscientização do que o de sensibilização. É claro que são conceitos que podem andar próximos, mas tomar o cuidado com esta exposição evitaria cairmos no sensacionalismo, o que de fato não é o propósito do projeto. A norma de proteção de imagem tem um motivo de ser e estamos sensíveis a isso na nossa página”.
Ana Luísa explica que a legislação portuguesa, assim como a brasileira, não trata especificamente a questão do direito de imagem da população em situação de rua. No entanto, a cultura da sociedade reflete a situação de forma distinta e isso pode ser constatado inclusive nos grandes meios de comunicação. “Seja o terceiro setor e seja (inclusive) a mídia tende a não expor os rostos das pessoas em situação de rua. Isso se deve porque a legislação do direito à imagem é bem rigorosa por aqui. Muito resumidamente, o direito da imagem se desdobra em: o direito da pessoa não ter o seu retrato exposto em público sem o seu consentimento. O consentimento é indispensável, portanto. Quando a imagem é captada contra a vontade do fotografado, ainda que não seja utilizada, ou ainda com consentimento, mas publicitada contra a vontade do fotografado; ou em ambas as situações, além de ilegal é considerado pela sociedade portuguesa como antiético. É comum entre as ONGs considerarem a exposição de rostos de pessoas em vulnerabilidade uma questão antiprofissional. O direito de imagem apesar de ser direcionado para a população em geral e não especificamente para a população em situação de rua engloba a todxs e por isso se aplica na prática a eles também. Tanto que, o direito de imagem é tratado como a faculdade de não ser fotografado sem o seu consentimento com ou sem caráter comercial. Está em causa não o cunho financeiro, mas a figura humana em termos tais, que se for identificável ainda que a foto envolva apenas partes do corpo é suficiente para ter proteção legal”.
Aqui no Brasil a legislação e a formação de políticas públicas para a população em situação de rua é muito recente. A Política Nacional para a População em Situação de Rua foi criada em dezembro de 2009. O projeto prevê a formação de Comitês Intersetoriais nas três esferas de poderes, mas elas têm sido pouco efetivas e já foram alvo de uma denúncia à Organização das Nações Unidas, a ONU, em 2017, por um conjunto de entidades e de movimentos sociais sobre o cenário de violência enfrentado pelas pessoas em situação de rua no Brasil. O documento aponta para o alto número de casos de violação de direitos humanos e indica a necessidade de criação de políticas públicas voltadas às pessoas que enfrentam esse tipo de vulnerabilidade social e econômica.
E essa ausência do estado é apontada também pelo antropólogo, Doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, coordenador do Projeto Moradia Primeiro e Diretor da Organização não Governamental Mãos Invisíveis, Tomás Melo, como a causa das violações sofridas pela população em situação de rua. E essa inércia também impede a alteração desse quadro. “Uma pessoa domiciliada que se sente violada em seus direitos de imagem pode ter problemas para garantir este uso inapropriado, no caso de uma pessoa em situação de rua, tal problema se agrava na medida em que as condições práticas de garantir os direitos (todos eles) são radicalmente comprometidas pela própria situação de exposição pública de seus corpos e das condições de acesso a toda ordem de bens”.
Melo afirma que isso reflete diretamente na questão do abuso ao direito de imagem dessa parcela da população, além da pressão do modelo econômico aplicado que acaba sendo ainda mais excludente. “Na sociedade capitalista, racista e desigual que vivemos, quanto maior a vulnerabilidade e precariedade econômica e política das pessoas, mais elas estão à mercê de toda sorte de intervenção e abuso. A captura não autorizada da imagem é um dos tantos abusos e violências sofridas pela população em situação de rua. Fenômeno que não é exclusivo do Brasil e que não se resume à imagem, tendo em vista que se trata propriamente de uma invasão do corpo e da individualidade deste ‘outro’ tratado como objeto, parte do cenário urbano. Da mesma forma que se captura a imagem, tenta-se impedir a permanência nos espaços com estratégias de arquitetura hostil, com o roubo de pertences e a expulsão sumária dos locais. Em sua forma final, os ataques violentos se manifestam como uma espécie de ‘solução final’ destes corpos indesejados”.
Mudança
Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB-PR, Anderson Rodrigues Ferreira, apesar de a legislação brasileira ser sofisticada e ter diversos recursos que abordam a questão, é preciso a formação de novos dispositivos. “A legislação brasileira precisa evoluir neste aspecto, buscando garantir de forma mais clara e específica o direito à imagem das pessoas em situação de vulnerabilidade social. Além disso, é importante que a proteção legal seja acompanhada de políticas públicas. A população em situação de rua é um problema social grave e complexo que exige políticas públicas eficazes e consistentes para ser solucionado. Infelizmente, o que se observa é a ausência de uma política pública inclusiva por parte do Estado, que muitas vezes se limita a criar planos de governo que acabam sendo abandonados a cada troca de mandato. A falta de continuidade na implementação de políticas públicas é um dos grandes desafios para enfrentar a problemática da população em situação de rua”, ressalta.
Já para o antropólogo Tomás Melo, não basta a alteração da legislação, mas sim o compromisso com a solução do problema, que vai além do Direito de Imagem. “A mudança da realidade das pessoas em situação de rua passa, em minha opinião, exclusivamente pela criação de condições de superação da situação de rua, causa primeira de todos os problemas que se agravam quando uma pessoa se encontra nesta circunstância. A defesa da imagem é um dentre diversos problemas, tais como acesso à saúde, educação, segurança alimentar, justiça, trabalho, renda, segurança, dentre outros. Todos eles severamente comprometidos em virtude da situação de rua. Por isso, a resolução destas questões passa, antes de tudo, pela capacidade de superar esta circunstância que diferencia pessoas domiciliadas daquelas em situação de rua”.
Resumo: Diante da pandemia da Covid-19 e de suas consequências, um grupo populacional específico já tão vitimado pela violência cotidiana teve sua sobrevivência ainda mais ameaçada. As medidas de segurança que tinham por objetivo proteger o conjunto da população da contaminação em massa deixou a população em situação de rua em uma condição generalizada de insegurança. Esse artigo tem por objetivo descrever o processo de abandono e de violação de direitos humanos pelo qual tem passado a população em situação de rua na cidade de Curitiba durante a pandemia, bem como destacar as medidas que foram tomadas pelos movimentos sociais, sociedade civil e universidades no enfrentamento desse processo necropolítico. Para esse fim, será realizada análise da Ação civil pública perpetrada pela Defensoria Pública do Estado do Paraná contra a Prefeitura Municipal de Curitiba, e as respostas que foram dadas pelo poder público ao Agravo referente as medidas exigidas e não cumpridas pelo poder público durante a pandemia. Além disso, será apresentado parte da estratégia de atuação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, na criação de uma cozinha solidária, bem como será descrito o processo de criação do Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua do Paraná. Como forma de refletir e analisar tal situação, será proposta uma discussão a partir do referencial teórico de Achille Mbembe, especificamente por meio dos conceitos de necropolítica e brutalismo.
Palavras-chave: Direitos humanos. Pandemia. Poder público. População em situação de rua.
Introdução
A população em situação de rua em todo o país tem seus direitos humanos sistematicamente violados e sofrem um processo de marginalização e exclusão por parte da sociedade em geral. Percebidas de forma extremamente negativa, consideradas potencialmente criminosas, vagabundas e dependentes químicos perigosas, na realidade são as pessoas submetidas a situação de sobrevivência sem moradia quem realmente se encontra em situação de perigo, risco e vulnerabilidade.
Os discursos e narrativas as culpabilizam por sua condição de vulnerabilidade gerando processos cada vez mais graves de invisibilidade, exclusão e, por consequência, de violência. O próprio fato de estar em situação de rua já é uma grande violação de direitos humanos por parte tanto do poder público e do sistema de justiça, como da sociedade civil em geral.
A violência contra essa população se manifesta de diferentes modos, sendo física, sexual, psicológica, patrimonial, entre diversas outras. A desproteção física caracterizada pela ausência de moradia expõe seus corpos nas ruas como se fossem públicos, fazendo com que tais pessoas se tornem o alvo de múltiplas violências. Além disso, a ausência de políticas públicas e de oportunidades reais para sair de sua situação agrava de forma mais profunda o contexto de violação e de sofrimento pelo qual passam as pessoas em situação de rua (MARTINS, 2018).
Com a necessidade de isolamento social durante a pandemia, esse grupo populacional específico já tão vitimado pela violência cotidiana, teve sua sobrevivência ainda mais ameaçada. As medidas de segurança que tinham por objetivo proteger o conjunto da população da contaminação em massa, deixaram a população em situação de rua em uma condição generalizada de insegurança. Sem água e banheiros públicos para realização de sua higiene pessoal e hidratação, com restaurantes populares e comércios fechados, sem itens de segurança como máscaras, luvas ou álcool gel, a vida de quem se encontra em situação de rua tornou-se rapidamente sacrificável. Expostos à contaminação, sede, fome e abandono do poder público, a vulnerabilidade em face da repressão e violência policial se intensificaram. Muitas vezes o sistema de justiça precisou ser acionado para que a prefeitura garantisse condições mínimas de sobrevivência dessa população.
Diante desse quadro, esse artigo tem por objetivo descrever o processo de abandono e de violação de direitos humanos pelo qual tem passado a população em situação de rua na cidade de Curitiba durante a pandemia, bem como destacar as medidas que foram tomadas pelos movimentos sociais, sociedade civil e universidades no enfrentamento desse processo necropolítico. Para esse fim, será realizada análise da Ação civil pública perpetrada pela Defensoria Pública do Estado do Paraná contra a Prefeitura Municipal de Curitiba, e das respostas que foram dadas pelo poder público ao Agravo referente às medidas exigidas e não cumpridas pelo poder público durante a pandemia. Além disso, será apresentado algumas estratégias de atuação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), na criação de uma cozinha solidária, bem como será descrito o processo de criação do Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua do Paraná (ODH). Como forma de refletir e analisar tal situação, será proposta uma discussão a partir do referencial teórico de Achille Mbembe, especificamente por meio dos conceitos de necropolítica e brutalismo.
A violência contra a população em situação de rua e os direitos humanos
As inúmeras formas de violência contra a população em situação de rua fazem parte de uma realidade muito presente tanto no Brasil como em outras partes do mundo, sendo um problema que apresenta uma urgência de intervenção. As estatísticas apontam para um expressivo aumento de pessoas em situação de rua em todo o país, como também para um alto nível de violência sofrida.
De acordo com o Observatório das Metrópoles (2019), o problema dos indivíduos que chegam à situação de rua é multifacetado, pois concentra, simultaneamente em um único sujeito, um conjunto de vulnerabilidades sociais, psicológicas, físicas, emocionais e econômicas. Assim, múltiplas também deveriam ser as ações que responderão ao conjunto de necessidades desses indivíduos. Segundo Cabral Júnior e Costa (2017), várias formas de violência atingem indivíduos da sociedade em geral, porém, a violência contra a população em situação de rua se torna mais alarmante, visto que se tratam de vítimas de processos socioeconômicos excludentes e da falência das políticas públicas de habitação, saúde e assistência social.
De acordo com Natalino (2020), durante o período de setembro de 2012 a março de 2020 foi possível observar um grande aumento da população em situação de rua no Brasil, chegando a um crescimento de 140%. Segundo o autor, em março de 2020, o número estimado de pessoas em situação de rua no país era de 221.869. Além desse expressivo aumento ao longo dos anos também foi possível observar uma aceleração recente desse crescimento em todas as regiões do país.
Embora os dados sobre violência sejam sempre subestimados. Segundo o Boletim Epidemiológico n° 14, da Secretária de Vigilância em Saúde e do Ministério da Saúde, que considerou o período entre 2015 e 2017, foram registrados no país 17.386 casos de violência direta contra a população em situação de rua. (BRASIL, 2019). As mulheres e as pessoas negras foram as principais vítimas da violência, alcançando 50,8% casos de violência contra a mulher e 54,8% contra pessoas negras. Em relação às formas de violência, a de maior predominância nos registros foi a física, com 92,9%. Posteriormente se encontram a violência psicológica e moral com 23,2% e a violência sexual com 3,9%. Sobre os autores da violência desconhecidos são 34,9%, seguido de amigos e/ou conhecidos, com 31,5% dos casos (BRASIL, 2019).
Essa violência contra às pessoas em situação de rua é naturalizada pela sociedade, contribuindo para a reprodução e manutenção desse fenômeno. O Estado omisso ou praticamente nulo na intervenção sobre a segurança dessa população, contribui de forma direta e indireta na manutenção da insegurança desses indivíduos (CABRAL JÚNIOR; COSTA, 2017). De acordo com Pimentel et al. (2015), a invisibilidade dos indivíduos em situação de rua e a indiferença da sociedade para com eles está diretamente relacionada aos processos de violência, tanto simbólicos quanto reais e vivenciados.
Segundo Melo (2016), a violência contra essa população vem de diferentes autores, como agentes de segurança pública, policiais e guardas municipais, principalmente em ações decorrentes do recolhimento de pertences pessoais e remoções forçadas. A violência pode vir também da sociedade civil, com agressões verbais ou físicas e até mesmo casos de homicídios e tentativas de homicídios contra essas pessoas. Ressalta-se também a violência de caráter higienista, praticada por policiais, comerciantes ou pessoas que se sentem prejudicadas com a presença dessa população nas calçadas da cidade e em frente aos seus estabelecimentos (ROSA; BRÊTAS, 2015).
A indiferença, o ódio ou a omissão da sociedade por vezes terminam em formas indiretas de extermínio dessa população, fato que vem acontecendo de forma frequente na capital do Paraná e por todo o Brasil. Além disso, destacam-se práticas diretas de extermínio com crueldade, em que a tortura e a morte violenta são comuns. Apesar dos altos índices de assassinatos em todo o país, taxa essa que vem crescendo cada vez mais, não existem investigações mais profundas sobre os culpados e muito menos punição na forma de lei (ALVARENGA, 2018).
Martins (2018) afirma que os dados não apontam para a totalidade de violências sofridas por esses indivíduos, considerando-se a dificuldade de se realizarem as denúncias e a subnotificação desses casos, especialmente quando executadas por agentes do Estado. Assim, muitas vítimas optam por não levarem adiante os registros de denúncia, por se sentirem desprotegidos ou até mesmo por medo de retaliações de seus violentadores, bem como dos agentes de órgãos públicos, ou da realização de detenções indevidas. Esse quadro revela que apesar de terem a garantia constitucional de seus direitos, as violações de direitos humanos ocorrem de forma sistemática.
A Constituição Federal de 1988 é considerada como um marco jurídico do processo de transição democrática e da institucionalização de direitos humanos no Brasil, propondo a defesa da dignidade humana e a afirmação da democracia participativa. Ela introduz o avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis na sociedade brasileira. Percebe-se, pois, que a Carta Constitucional visa a construção de um Estado Democrático de Direito, que objetiva assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, além da liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça (PIOVESAN, 2011; SILVEIRA, 2019).
Em seu Artigo 5º, a Constituição Federal expressa os direitos humanos quando conclama para a igualdade de todos os cidadãos brasileiros perante a lei e a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Assim também em seu artigo 5º, quando afirma: “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Contudo, não bastam as declarações e legislações para se garantir direitos, pois eles se caracterizam como resultado sempre provisório das lutas dos seres humanos pelo acesso aos bens necessários para a vida, ou seja, os direitos humanos se constituem como resultados impermanentes de lutas sociais (FLORES, 2009). Assim, o resultado dessas lutas deverá ser garantido a partir de normas jurídicas, políticas públicas e por uma economia aberta aos requisitos da dignidade, bem como pela formação ética e política da população por meio da educação (BONETI, 2019; SILVEIRA, 2019). O problema é que, de acordo com Resende e Mendonça (2019), a falta de conhecimento, especialmente das especificidades e necessidades dessa população, é um dos obstáculos que dificultam a implantação efetiva de políticas públicas específicas (ROCHA; CORONA, 2015). Mesmo depois de trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual determina a igualdade de todos e todas parente a lei e a garantia de direitos sociais, uma considerável parte da população brasileira, mesmo organizados na luta social, não acessa grande parte dos direitos previstos na constituição. Sem o acesso aos direitos básicos e essenciais à vida digna, a população em situação de rua sofre a ausência de políticas públicas e o descaso social (RESENDE; MENDONÇA, 2019). Tal realidade se tornou ainda pior durante a pandemia da Covid-19.
O desafio da política para população em situação de rua em Curitiba durante a pandemia
Com a pandemia da Covid-19 a população brasileira pobre teve muita dificuldade para manter condições financeiras mínimas que desse conta de suas despesas com habitação, alimentação, transporte, saúde, educação, etc…, isso porque uma grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras ganha seu sustento em empregos informais que dependem diretamente da movimentação populacional dos grandes centros urbanos. Embora as medidas de afastamento social e fechamento temporário de espaços que representam riscos iminentes de contágio tenham sido necessárias e muitas vezes ocorrido de forma insatisfatória e aquém do que a situação exigia no Brasil, o impacto dessas medidas foi brutal para a sobrevivência da população mais vulnerável. Além disso, a falta de medidas de redução dos danos econômicos e sociais da pandemia para a população mais pobre fez crescer o número de pessoas desempregadas, tornando impossível para algumas famílias se manter domiciliadas, fato que fez aumentar o número de pessoas vivendo em situação de rua.
Os índices preliminares com relação ao desemprego, a pobreza e a fome no país são alarmantes. No ano de 2020 o desemprego aumentou cerca de 3% e 485 mil famílias passaram a condição de extrema pobreza, o que coincide não apenas com o período de pandemia, mas também com o desmonte sem precedentes nas políticas de proteção social e de segurança alimentar do Estado brasileiro. (NEVES et al, 2021). Por consequência, a população em situação de rua tem crescido de forma exponencial em todo o país. Cada vez mais pessoas chegam as ruas, muitas vezes são famílias inteiras que já não conseguem mais arcar com suas despesas e se encontram nessa condição de miséria e pobreza extrema.
Os dados obtidos por meio de uma pesquisa de doutorado realizada no Rio de Janeiro revelaram esse novo perfil ao indicar que 31% das pessoas entrevistadas estavam em situação de rua a menos de um ano, sendo que 64% por razões relacionadas a perda do emprego, renda ou moradia. (GAMEIRO, 2021). Se já havia uma ausência generalizada de políticas públicas para a população em situação de rua, essa realidade ficou ainda mais evidente durante a pandemia. Sem poder se manter em casa, já que não possuem domicílio; sem possibilidade de usar máscaras ou álcool gel decorrente da falta de recursos para comprar; muitas vezes sem acesso a água para lavar as mãos ou mesmo para beber, a população em situação de rua ficou ainda mais exposta ao risco de morte. A pandemia escancarou o fato de que os mais vulneráveis são os primeiros a serem deixados para morrer, principalmente aqueles que padecem sobre o estigma e o preconceito. As palavras de José Vanilson Torres da Silva, da coordenação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) demonstram o drama dessa realidade de forma contundente:
Estar nas ruas é difícil e agora com a pandemia ficou muito mais complicado, pois habitação, saúde e educação, dentre outras, é direito do povo brasileiro e é dever do Estado. Nos oferecem abrigos na modalidade de isolamento, mas quando essa pandemia passar teremos que voltar pras ruas? Por tormento? (apud SILVA; NATALINO; PINHEIRO 2020, p. 7).
Embora as palavras de Vanilson pressuponham uma ação governamental emergencial durante a pandemia e chame a atenção para o caráter paliativo de medidas que não se tornam políticas públicas efetivas, tais ações ainda foram extremamente pouco efetivas e sem grande abrangência. No caso da cidade de Curitiba isso se torna evidente, pois as medidas emergenciais que se esperaria do poder público municipal tiveram que ser demandadas e cobradas por meio do sistema de justiça, até mesmo para que decisões judiciais fossem cumpridas.
O levantamento realizado pelo IPEA (SILVA; NATALINO; PINHEIRO 2020) indica que todos os municípios estudados tiveram algum tipo de política emergencial para a população em situação de rua e procuraram de alguma forma seguir as orientações publicadas pelo Ministério da cidadania, Defensoria pública da União, Conselho Nacional de Direitos Humanos e Ministério da Mulher, Cidadania e Direitos Humanos. As políticas emergenciais em geral se caracterizaram por medidas no âmbito da própria política nacional (BRASIL, 2008) para a população em situação de rua, nos campos do abrigamento, alimentação, orientação, higiene, saúde e serviços especializados.
Na cidade de Curitiba algumas medidas foram tomadas para tentar oferecer um atendimento melhor para essa população, com destaque para a inauguração de mais um espaço para abrigamento, localizado na região do bairro Campina do Siqueira, bem como o projeto desenvolvido na praça Plínio Tourinho, que ampliou os serviços oferecidos. Contudo, Curitiba foi cenário de um grande absurdo no que se refere à política de alimentação. Criou-se um programa que na sua origem previa proibir pessoas e entidades, não cadastradas na prefeitura, realizarem entrega de marmitas, com pagamento de multa para quem insistisse em não se adequar (MAROS, 2021).
Diante da articulação e mobilização do MNPR, da sociedade civil organizada, das igrejas e universidades, e da repercussão negativa do Projeto Mesa Solidária em todo o território nacional levou a prefeitura a modificar a proposta. O projeto foi aprovado e entidades cadastradas contribuem em espaços específicos com a entrega de alimentos em parceria com a prefeitura, mas a atividade livre e espontânea não foi proibida.
Com o fechamento dos restaurantes populares e a diminuição da oferta de alimentação pela sociedade civil e igrejas decorrente da pandemia, o MNPR criou sua própria cozinha para garantir o mínimo de segurança alimentar para seus pares. Além disso, houve apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que também se organizaram para ajudar na distribuição de refeições na capital do Paraná.
Contudo, a oferta dos serviços públicos nessa área deveria ser organizada de forma a dispensar ou ao menos deixar de depender da solidariedade e caridade da população. Em vez disso, o projeto Mesa Solidária da Prefeitura Municipal de Curitiba usa ações de ongs, igrejas e movimentos para compensar a carência de políticas públicas de segurança alimentar adequadas. Não é apenas o projeto de alimentação para a população em situação de rua que demonstra os problemas das políticas municipais para o atendimento emergencial na cidade. Outra situação dramática se revela na disputa judicial entre a Defensoria Pública do Estado e o Governo Municipal.
Judicialização para garantir os direitos da população em situação de rua
No dia 4 de junho de 2020 a Defensoria Pública do Estado, por meio do Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos (NUCIDH) ajuizou ação civil pública para garantir direitos básicos durante a pandemia, no caso, alimentação, água, máscaras, álcool gel e o acesso gratuito aos banheiros públicos, bem como vagas suficientes em unidades de acolhimento e a elaboração de um plano de contingência. Tal ação foi impetrada justamente em função das denúncias recebidas sobre a insuficiência de políticas emergenciais e o risco de ter um grupo completamente desassistido. De acordo com a coordenadora do NUCIDH, Mariana Gonzaga Amorim, a ação civil publica só foi ajuizada em função das respostas insatisfatórias por parte da prefeitura às explicações que foram solicitadas (PARANÁ, 2020).
Como se não bastasse o constrangimento causado pela própria ação civil ao poder público, após perder em primeira instância a prefeitura interpôs recurso para tentar modificar o resultado. Todavia, por unanimidade o Tribunal de Justiça determinou o acesso gratuito da população em situação de rua aos banheiros públicos, assim como a distribuição de água potável, máscaras e álcool gel. Em sua argumentação o poder público tentou reivindicar o direito de tarifar o uso dos banheiros públicos, ao que a decisão do Tribunal de Justiça respondeu:
Sobre o tema, não se ignora que os banheiros da Praça Rui Barbosa, Praça Osório e Praça Tiradentes tem o uso condicionado ao pagamento de tarifa por força da Lei Municipal 8.121/93, que estabeleceu o regime de concessão para a URBS e previu a possibilidade de cobrança. ” […] A referida concessão, contudo, não isenta o Município Agravante de cumprir com a Decisão Agravada através do custeio das referidas tarifas, de forma a possibilizar o uso gratuito dos sanitários pela população de rua, haja vista a obrigação constitucional de garantir condições dignas de vida e saúde aos cidadãos – sem exceção, atrelada à situação de premente necessidade dos moradores de rua evidenciada nos autos (PARANÁ, 2021).
A questão que se impõe para reflexão é sobre o que leva a Prefeitura Municipal de Curitiba a interpor recurso para se negar a cumprir uma decisão Judicial que visa garantir o acesso a um direito tão básico e fundamental? Outra argumentação para não atender as medidas impostas versam sobre a divisão de poderes, pela alegação de que ao poder judiciário não cabe demandar políticas públicas, o que foi respondido da seguinte maneira: “Os Insurgentes afirmam que não cabe intervenção judicial para a modificação de política pública já existente, mormente quando não há qualquer ilegalidade apontada, importando tal intervenção em indevida imposição de modo de agir à Administração Pública” (PARANÁ, 2021). Coube a desembargadora esclarecer ao poder público sobre o papel do sistema de justiça nesse caso, destacando que a negligência no cumprimento de medidas que visam garantir direitos fundamentais da população será sempre passível de intervenção do poder judiciário.
A tese recursal, contudo, aparenta esbarrar nos entendimentos doutrinário e jurisprudencial pacificados no sentido de que quando demonstrada a excepcional negligência do ente público para com seu dever de garantir condições dignas de vida e saúde aos cidadãos, faz-se possível a interferência judicial na seara das políticas públicas sem que tal medida implique em ofensa ao princípio da Separação de Poderes. (PARANÁ, 2021)
A alegação da prefeitura indica a falta de disponibilidade em cumprir uma decisão judicial que apenas procura lembrar ao poder público sobre a necessidade de garantir direitos humanos para todas as pessoas, principalmente durante a pandemia. Diante desse tipo de disputa judicial se coloca em questão o próprio modo de funcionamento da política, sendo importante reconhecer que infelizmente a relação entre o estado e a sociedade civil, no que se refere ao reconhecimento e à garantia de direitos, ocorre de forma extremamente desigual. É a dinâmica do poder que decide quem é mais ou menos humano, portanto, mais ou menos digno de ter seus direitos efetivados. Esse poder não emana do governante de forma centralizada, mas opera em rede por toda a estrutura social e se reproduz em todas as instituições e espaços nos quais se estabelecem as relações entre pessoas, por isso um biopoder que estabelece quem deve viver e quem deve ser deixado para morrer por meio do racismo de estado (FOUCAULT, 1999).
Necropolítica, brutalismo e resistência da população em situação de rua
As inúmeras formas de violência e de violações de direitos pelos quais passa a população em situação de rua exige uma discussão que admita haver um tipo de política que não se explica apenas pela lógica da incompetência técnica e da escassez econômica, como fatores limitantes para que se possa levar condições minimamente dignas para cidadãos e cidadãs em condição de tamanha vulnerabilidade. É preciso reconhecer que o racismo de Estado é um operador biopolítico de primeira ordem quando se trata de negar políticas de saúde e assistência social mínimas, e que, portanto, é função do soberano, decidir sobre quem deve viver e quem deve ser deixado para morrer, conforme expressa a formulação foucaultiana (FOUCAULT, 1999).
Embora seja difícil para a sociedade admitir que a condição fundamental da política, aquilo que define o próprio princípio da soberania, esteja relacionada a essa escolha. Não há como negar que o desprezo pela vida das pessoas em situação de rua, notável não apenas entre governantes, como também entre os demais cidadãos e cidadãs que se julgam como sendo “de bem”, seja a própria expressão de um necropoder. Procurando explorar a tese foucaultiana sobre biopolítica e o racismo de Estado, Achille Mbembe usará a expressão necropolítica para tratar dessa forma como algumas vidas são não apenas expostas a condição de vidas matáveis pelo poder soberano, mas são efetivamente o alvo a ser exterminado, algo que a noção de biopoder não parece alcançar. De acordo com Mbembe (2016, p. 146):
[…] a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de ‘mundos da morte’, formas novas e únicas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’.
A forma como a população em situação de rua é morta não implica uso de armas poderosas ou práticas de destruição em massa como nas guerras coloniais e nas novas guerras de controle territorial, mas a não política adotada durante a pandemia da Covid-19 pode ser considerada uma expressão desse necropoder do qual fala Mbembe. Além disso, diante da naturalização do capitalismo exploratório e dos artifícios tecnológicos e cibernéticos de sua reprodução, pelas quais se intensificam a lógica da exploração e da exclusão de grupos populacionais inteiros, a necropolítica contra a população em situação de rua se impõe de forma brutal.
A brutalidade do sistema de exploração colonial, o qual se baseava na violência da escravização, não parece ter desaparecido, pelo contrário, se estende a um conjunto cada vez maior de pessoas. Por meio do poderio tecnológico, embora pessoas negras e empobrecidas sejam as principais vítimas, a marcha do progresso e da realização capitalista estende a vulnerabilidade e produz miséria e morte em grande escala. O brutalismo, na perspectiva de Mbembe (2020a), diz respeito ao processo contemporâneo pelo qual o poder de matar é a tal modo intensificado que se torna uma espécie de força geomórfica, operando processos de exclusão e relativização da vida em nome de uma sociedade científica e tecnológica a serviço da economia de mercado e do lucro a qualquer preço.
A pandemia da Covid-19 deixou isso evidente quando estabeleceu o dilema vida versus economia. A dificuldade de parar o sistema de produção capitalista para salvar vidas evidenciou essa máquina mortífera, esse moedor de carne, que expulsa cada vez mais pessoas dos círculos internos dos direitos e as coloca em uma marcha fúnebre em direção a miséria, a fome e a morte. Diante dessa realidade de asfixia é preciso reivindicar um direito universal à respiração.
Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se houver guerra, portanto, ela não será contra um vírus em particular, mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade à cessação prematura da respiração, tudo o que ataca sobretudo as vias respiratórias, tudo que, durante a longa duração do capitalismo, terá reservado a segmentos de populações ou raças inteiras, submetidas a uma respiração difícil e ofegante, uma vida penosa. Para escapar disso, contudo, é preciso compreender a respiração para além de seus aspectos puramente biológicos, como algo que é comum a nós e que, por definição, escapa a todo cálculo. Estamos falando, portanto, de um direito universal à respiração (MBEMBE, 2020b, s.p.)
Foi pensando na necessidade que se impôs de forma ainda mais radical durante a pandemia de lutar por esse direito, que o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), além de criar a sua própria cozinha solidária, organizou junto com seus parceiros o Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua no Paraná. Com a urgência de prover alimentos para quem tem fome e que ficaria em uma situação de completo abandono nos piores momentos da pandemia e das medidas de isolamento social, algumas entidades e organizações se aproximaram do MNPR em Curitiba e idealizaram um grande projeto para contribuir com a luta por esse ‘direito universal à respiração’ e aos direitos humanos de forma geral.
Nesse sentido, o Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua foi criado a partir das denúncias constantes de violências sofridas e de direitos fundamentais não garantidos por parte do poder público e dos órgãos de justiça na cidade de Curitiba e em diversas cidades do Estado do Paraná. Nasceu do protagonismo da luta por direitos do Movimento Nacional da População em Situação de rua e do Instituto Nacional da População em Situação de Rua (INRUA), por meio da articulação com o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Paraná e o Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em parceria com a Casa de Acolhida São José, a Organização Mãos Invisíveis, o Conselho Regional de Psicologia, a Rede de Saúde Mental e Economia Solidária (Libersol) e o Projeto Praxis Itinerante da Universidade Estadual de Londrina.
Trata-se de um espaço de estudo, pesquisa e incidência política que produz dados sobre as violações sofridas pela população em situação de rua e dá encaminhamento aos órgãos responsáveis do poder público, do sistema de justiça e da sociedade civil, com o objetivo de efetivação dos direitos humanos. Com espaço físico na cidade de Curitiba e plantões diários para o acolhimento da população em situação de rua e escuta das denúncias sobre a violência sofrida no cotidiano das ruas da cidade e negligência do poder público municipal e estadual, se pretende ser um espaço de resistência e reinvenção de novas formas de viver e se relacionar coletivamente. Isso porque diante de brutalismo dos tempos atuais se torna urgente “uma interrupção voluntária, consciente e plenamente consentida que precisamos, caso contrário, mal haverá um depois” (MBEMBE, 2020b, s.p.).
Considerações finais
A população em situação de rua tem sofrido com o aumento da violência e as práticas de extermínio desde o golpe civil, parlamentar e empresarial contra a primeira mulher eleita presidenta na história do Brasil, em 2016. E com a chegada da extrema direita ao poder o autoritarismo protofascista atingiu níveis inimagináveis para uma sociedade que acredita ser civilizada. O grau de violência sofrido se expressa não apenas pela negligência e abandono do poder público municipal, mas também pelo tipo de resposta fornecida aos órgãos de justiça para que não se cumpra o dever constitucional de garantir direitos fundamentais à população em situação de rua.
Entrar em uma disputa judicial para relativizar a obrigação de fornecer água potável, liberar o acesso a banheiros públicos, fornecer alimentação e parar de recolher pertences individuais demonstra a capacidade do poder público de não apenas decidir quem tem direitos e quem não tem, mas, sem exageros, decidir quem deve viver e quem deve morrer. A insuficiência de políticas para a população em situação de rua durante a pandemia e a disputa judicial envolvendo a prefeitura municipal para se reivindicar uma espécie de direito de não cumprir deveres explicitou a necropolítica e o brutalismo dos tempos atuais.
Contudo, a resistência dos movimentos sociais, dos espaços de controle social, igrejas, universidades e organizações da sociedade civil, que se evidencia pela criação do Observatório Estadual de Direitos Humanos da População em Situação de Rua, demonstra que nem todos sucumbem a tempos sombrios. Diante da escalada de violência e banalização da vida humana não resta outra alternativa senão o engajamento político e social concreto, inclusive no âmbito da pesquisa e da vida acadêmica.
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Quando eu penso em “caridade”, algumas cenas surgem automaticamente na minha cabeça: carrões estacionados em vielas esburacadas, cheias de lama e poças d’água, com casas em extrema vulnerabilidade, sem esgoto, sem banheiros, sem piso, sem forro. Crianças descalças correndo atrás de alimentos, de pirulito. Mães com rugas que só a pobreza traz, dentes que jamais vão passar por “branqueadores à laser” e pais que quando não ausentes, estão ali juntos catando doações com o afinco que só quem já passou fome sabe como é.
Dos carrões eu vejo mulheres lindas, com cabelos cheio de luzes, loiras, com saias de milhões, celulares que valem mais que um ano de trabalho árduo dos pais que mencionei acima. Descem de seus carros (que podemos aqui chamar de “bolhas”) e por alguns momentos vivenciam aquele espetáculo que é ver o pessoal faminto sendo “saciado”, com muitos “Deus abençoe”, “vocês são anjos na terra”, “obrigado demais”.
Depois de fotos e risadas e rostos de crianças pintadas e todo mundo com pirulitos e cobertas em mãos, os carrões saem para seus condomínios fechados e voltam à rotina, também saciadas, afinal de contas, a miséria alimenta a riqueza tanto quanto as migalhas alimentam os miseráveis.
A caridade permeia a ideia de que existem pessoas muito, muito boas que ajudam os que não são tão bons assim, afinal, “não deram certo” na vida. E a religião (e aqui falo de todas as formas de relação com o divino) é fundamental para esse embasamento, uma vez que o amor ao próximo e as obras, em todos os contextos, são a base para o salvamento ou a evolução espiritual de cada indivíduo.
Não existe fé sem obras, nem evolução sem a caridade. E não existe caridade sem miséria, não é mesmo? Como eu, como caridosa, evoluiria se não existissem crianças descalças e desagasalhadas para atender? Como eu alcançaria degraus no céu se não existissem pessoas dormindo em marquises?
Esse pensamento tem forte ligação com a história do Brasil. Nosso “passado” escravocrata, colonial e racista é um prato cheio para uma estrutura de sociedade dividida entre isentos, benevolentes e miseráveis.
É fundamental, tanto para o capitalismo quanto para o caridoso, que a miséria não só exista, mas se intensifique, para que o ato de “fazer o bem sem ver a quem” seja fácil, barato e necessário. Assim, não precisa se pensar em políticas públicas, nem definir exatamente o que é papel do Estado e o que cabe à sociedade. Levamos o ato solidário como a única coisa que podemos fazer para, veja, muito entre aspas, “diminuir” a desigualdade social e saciarmos não só a fome deles, mas da própria consciência.
E analisando desse ponto, fica fácil e visível perceber a obviedade das relações entre a caridade e a miséria. A naturalização da desigualdade social nos afasta do problema em si (e de suas soluções) e nos aproxima da espetacularização da caridade como central.
E não se trata aqui de menosprezar os trabalhos sociais, em absoluto, mas questionar a origem e a ligação intrínseca que se tem entre a pobreza e a bondade divina de pessoas caridosas. Se trata de refletir sobre até quando veremos sapatos de milhões entregando comida barata em vielas imundas e abandonadas pelo poder público sem ao menos questionar o que se pode fazer para mudar essa realidade.
Se trata, no fim das contas, de colocar os pratos na mesa e entender o que estamos fazendo, realmente. O assistencialismo é necessário? Sim, ainda mais em momentos turbulentos em que estamos vivendo. Mas e aí, até onde isso vai? Até onde essa caridade não passa de uma questão individualista, de evolução pessoal e não abrange a coletividade e a mudança real na vida das pessoas afligidas por um sistema injusto em que se permite tal disparidade?
Entregar comida para crianças que carrinham com seus pais catando lixo dos seus condomínios doze horas por dia e seguir em frente como se essa realidade fosse realmente aceitável? Ou mudar a forma de pensar e entender que precisamos de educação, de moradia digna e de condições de trabalho humanos para que aquelas crianças tenham minimamente a chance de pensar uma vida diferente para seu futuro.
Me soa hipócrita a caridade. Me soa hipócrita justificarmos na religião algo que é o algoritmo determinante da sociedade em que vivemos. Precisamos expor de forma sucinta aquilo que está escancarado diariamente por ai. Quando seremos realmente cidadãos?
Em um vídeo que circulou na internet um ano atrás, um homem, empresário, político, encostava o seu carro e oferecia dinheiro a um indivíduo que dizia estar passando fome. Enquanto conversava com o indivíduo, o empresário filmava o diálogo. Apesar de desconfiado, o homem em situação de rua permanece ali, pela promessa de receber mais um pouco de dinheiro. Enquanto finge se compadecer da situação, o empresário puxa o braço do rapaz, lhe dá um tapa e grita: “vai trabalhar, vagabundo”. O vídeo viralizou, revoltou muita gente e fez o empresário ser expulso do seu partido político. Em sua defesa, ele disse que o rapaz, no dia anterior, tentou assaltá-lo, mantendo-o sob a mira de um revólver. Não havia, entretanto, um boletim de ocorrência registrado do fato. Mesmo no vídeo, não houve referência ao suposto assalto. O empresário chama o rapaz de “vagabundo” e o manda “trabalhar”, não fazendo qualquer referência a uma abordagem anterior.
Na mesma época, outro vídeo mostrava uma mulher acusando um homem em situação de rua de pegar o seu celular. Ele, sem reagir, lhe entrega a mochila que carrega para que ela a reviste. Ela, não encontrando o celular, fere o homem com uma faca. Ele se afasta. Ela o segue e o fere mais algumas vezes. O homem é atendido em um hospital, mas não resiste e morre. Por acaso, câmeras de segurança gravaram a cena. Por acaso, não estamos especulando se “não foi por drogas”, se “não foi legítima defesa” ou o que costumamos inferir quando a vítima é pessoa em situação de rua.
Era uma vida humana, e foi tirada assim, de forma banal.
Precisamos falar sobre o valor dos corpos das pessoas em vulnerabilidade social. Sobre o esvaziamento, no imaginário coletivo, da sua condição humana. Sobre seu rotulamento como criatura descartável. As notícias na imprensa são sempre superficiais e sensacionalistas. Qual era o seu nome? O que o levou às ruas? Os vídeos que citei rodaram o país sem suscitar nenhuma discussão profunda. Talvez vocês nem saibam do que estou falando. Chocaram, e passaram.
O homem, esses homens, qualquer homem ou mulher merece respeito do Estado e da comunidade, mesmo quando não acredita mais merecer. Qualquer ato degradante e desumano com o outro esvazia a dignidade de toda a humanidade. Respeito é o mínimo. É como a antiga lição da sua avó: tenha pelo outro o mesmo respeito que você pensa que lhe devem.
Nenhum de nós ergueu a faca ou investiu contra esses homens, mas todos nós precisamos falar sobre como aceitamos, diariamente, o esvaziamento de sua humanidade, sua invisibilização social. Sobre como lemos, todos os dias, sobre “moradores de rua” esfaqueados, queimados, recolhidos, sem nos perguntarmos “o que realmente aconteceu?”, “quem era essa pessoa?”, “como ela chegou até ali?”, sem pensarmos que a vida é fluida e insegura, e que aquele corpo vulnerável podia tranquilamente ser o meu, ou o seu.
Que a nossa substância é a mesma. Que todos nós estamos igualmente sujeitos.
Quando olhamos para a pessoa em situação de rua, temos o hábito de retirar dela a condição de ser social. Dizemos: ele é um excluído. Não pensamos nesse grupo de pessoas como indivíduos que existem socialmente, que sim, consomem, interagem. São pessoas que, mesmo em bicos no mercado informal, descarregam caixas, catam e reciclam o papelão que descartamos, ou até, em situações de trabalho degradante e desumano (“ele deve levantar as mãos pro céu que alguém lhe deu um emprego!”), erguem as estruturas dos festivais cool de música que frequentamos.
Nós, indivíduos moradores, precisamos parar de desumanizar as pessoas em situação de rua para, assim, melhor lidarmos com o absurdo de estarmos dormindo calmamente sob nossos tetos, sem grandes angústias, enquanto tantas pessoas feitas de carne, osso e dores como todos nós se expõem ao desamparo e à desesperança. Para nos convencermos que o artigo 1º, inciso III da Constituição Federal garante somente uma dignidade humana, a nossa, a dignidade dos humanos que mereceram, cuja família não se desestruturou, cuja vida não sofreu vieses, cujo corpo não falhou.
Essa é a urgência: precisamos parar de repartir os seres humanos em categorias quando falamos no mínimo. O mínimo é o mínimo. A sociedade somos todos, morando ou não. Quem está na rua dormindo tem rosto, tem história, mas não devemos esperar ouvir cada narrativa para lembrar disso, para julgarmos, do nosso plenário invisível, feito uma casta superior de Cérberos, quem merece morrer ou viver.
Alguns anos após entrar no “mundo” da solidariedade, da luta pelo outro, da militância, eu acho que posso dizer que todo começo é um pouco emocionado. A gente vive um momento de descoberta e de paixão, em que criamos nossas próprias utopias e várias ilusões. A gente acredita mesmo, por um tempo, que estamos aqui pra transformar o mundo muito rapidamente. Que conseguiremos vencer as demandas, ajudar várias pessoas, mudar a mente das gestões, ocupar espaços de luta e discussões de forma pacífica e muito amorosa.
Até que, aos poucos, vamos entendendo a realidade. Realidade distópica que vivemos, em que pesa grandemente a lerdeza da política e a urgência da rua. Como que em um baque fortíssimo, você se depara com as suas ilusões ali, de carne e osso, na sua frente, ilusões vivas, com nome, sobrenome e uma vida inteira sendo violadas em seus direitos.
Eu já me deparei com várias dessas ilusões. E cada uma delas me muda tão grandemente, que nem consigo me lembrar como era a vida antes disso. A última vez foi domingo. Domingo, dia das mães, eu posso dizer que segurei o rosto, com minhas duas mãos, da minha maior e mais utópica ilusão. Um rosto machucado, todo cheio de feridas, que sorria pra mim dizendo “está tudo bem”. Não, não estava. Pra mim, não estava. Ela talvez conheça menos de ilusão do que eu… se bem que lembro de conversarmos, na minha sala, sentadas e com seu filho no meu colo, sobre como ela se formaria na faculdade, com todo glamour que desejava. Duas iludidas.
Sim, eu e minha ilusão tivemos uma relação muito próxima. Ela, uma menina que conheci quando estava grávida, em situação de rua, tentando sobreviver em meio às intempéries que a situação traz. Eu, emocionada, acreditando que poderia mudar a vida de alguém.
Durante todo o processo, confesso que não percebi o quão inocente eu estava sendo. Foram meses de muito carinho, contato, cuidado, proteção. Acreditei de forma intrínseca que seria algo transformador, pra mim, pra ela, pra todas as pessoas que estavam ali, iludidas.
Passei por tudo que alguém possa imaginar. Desde recolher uma mãe adolescente em casa, até enfrentar conselhos tutelares e juiz em uma audiência de cartas marcadas. Conversas, parcerias, gente que estava ali, acreditando tanto quanto eu que poderíamos realmente mexer com peixes grandes.
Quando recebi a notícia de que o bebê havia sido entregue para um abrigo e minha ilusão estava de novo abraçada ao acaso, nas ruas, meu mundo desabou. Desabou mesmo, como se o chão desmoronasse. "Como assim?Depois de tudo o que fizemos? Ela volta pra rua? E o amparo, e o Estado, e a prefeitura, e a sociedade? Como deixam isso acontecer desse jeito?" E dali pra frente, não poderíamos fazer mais nada.
Vi minha iusão esmorecer como areia entre meus dedos, tomando outras formas, outras decepções. Vi uma mulher se entregando às circunstancias da vida e não tive força nenhuma pra falar que não era pra ser assim. Dei esperança, falei que ela conseguiria, menti. Menti e prometi coisas que jamais conseguiria cumprir, fiz acreditar que ela teria chances. Não teve.
Achamos que conseguiríamos provar que todas as mulheres tem o direito de ser mães, que alguém entenderia isso, minimamente. E que antes e muito antes de sermos mães, somos MULHERES, e com direitos. Acreditamos que enfrentar o Estado seria possível. Que ignorar a ausência de políticas públicas que contemplem essas iludidas e violadas, que nem direito a ser mulheres tem, seria viável.
Quando pego no rosto dela eu me deparo muito mais comigo mesma e uma revolta com a qual convivo todos os dias, do que com qualquer outra coisa. Não é altruísmo nem caridade nem vontade de evoluir. É uma consciência tao imensa sobre nossa falência enquanto sociedade, tao imensa e tao perturbadora, que só resta respirar, olhar nos olhos dessas ilusões e dizer que não vamos cansar.
Sigo acreditando que estou aqui pra gritar muito pra que essas mulheres caladas enquanto são violadas desde o nascimento até a maternidade e velhice, sejam minimamente vistas, ouvidas, sentidas. Que vou segurar com minhas mãos cada uma dessas ilusões e pensar que, em algum momento, conseguirei faze-lo sem que o silêncio tome conta do meu peito, enquanto minha mente grita sem parar!
Texto redigido por Vanessa Lima, Coordenadora e idealizadora do Projeto Mãos Invisíveis