A relação entre a caridade e a sociedade de bem
Como definir a caridade nos dias atuais? O que pensar sobre esse conceito?
Projeto Mãos Invisíveis
Dos carrões eu vejo mulheres lindas, com cabelos cheio de luzes, loiras, com saias de milhões, celulares que valem mais que um ano de trabalho árduo dos pais que mencionei acima. Descem de seus carros (que podemos aqui chamar de “bolhas”) e por alguns momentos vivenciam aquele espetáculo que é ver o pessoal faminto sendo “saciado”, com muitos “Deus abençoe”, “vocês são anjos na terra”, “obrigado demais”.
Depois de fotos e risadas e rostos de crianças pintadas e todo mundo com pirulitos e cobertas em mãos, os carrões saem para seus condomínios fechados e voltam à rotina, também saciadas, afinal de contas, a miséria alimenta a riqueza tanto quanto as migalhas alimentam os miseráveis.
A caridade permeia a ideia de que existem pessoas muito, muito boas que ajudam os que não são tão bons assim, afinal, “não deram certo” na vida. E a religião (e aqui falo de todas as formas de relação com o divino) é fundamental para esse embasamento, uma vez que o amor ao próximo e as obras, em todos os contextos, são a base para o salvamento ou a evolução espiritual de cada indivíduo.
Não existe fé sem obras, nem evolução sem a caridade. E não existe caridade sem miséria, não é mesmo? Como eu, como caridosa, evoluiria se não existissem crianças descalças e desagasalhadas para atender? Como eu alcançaria degraus no céu se não existissem pessoas dormindo em marquises?
Esse pensamento tem forte ligação com a história do Brasil. Nosso “passado” escravocrata, colonial e racista é um prato cheio para uma estrutura de sociedade dividida entre isentos, benevolentes e miseráveis.
É fundamental, tanto para o capitalismo quanto para o caridoso, que a miséria não só exista, mas se intensifique, para que o ato de “fazer o bem sem ver a quem” seja fácil, barato e necessário. Assim, não precisa se pensar em políticas públicas, nem definir exatamente o que é papel do Estado e o que cabe à sociedade. Levamos o ato solidário como a única coisa que podemos fazer para, veja, muito entre aspas, “diminuir” a desigualdade social e saciarmos não só a fome deles, mas da própria consciência.
E não se trata aqui de menosprezar os trabalhos sociais, em absoluto, mas questionar a origem e a ligação intrínseca que se tem entre a pobreza e a bondade divina de pessoas caridosas. Se trata de refletir sobre até quando veremos sapatos de milhões entregando comida barata em vielas imundas e abandonadas pelo poder público sem ao menos questionar o que se pode fazer para mudar essa realidade.
Se trata, no fim das contas, de colocar os pratos na mesa e entender o que estamos fazendo, realmente. O assistencialismo é necessário? Sim, ainda mais em momentos turbulentos em que estamos vivendo. Mas e aí, até onde isso vai? Até onde essa caridade não passa de uma questão individualista, de evolução pessoal e não abrange a coletividade e a mudança real na vida das pessoas afligidas por um sistema injusto em que se permite tal disparidade?
Entregar comida para crianças que carrinham com seus pais catando lixo dos seus condomínios doze horas por dia e seguir em frente como se essa realidade fosse realmente aceitável? Ou mudar a forma de pensar e entender que precisamos de educação, de moradia digna e de condições de trabalho humanos para que aquelas crianças tenham minimamente a chance de pensar uma vida diferente para seu futuro.
Projeto Mãos Invisíveis